segunda-feira, 28 de março de 2011

TU ÉS A CRUZ QUE EU CARREGO



TU ÉS A CRUZ QUE EU CARREGO

Conto extraído do romance o Mago de Santa Ana de Ruy Crespo


Portugal - Santa Inquisição- 1585

O cão do demônio estava morto. Atrevido! Inconsequente! Comer logo a sua galinha cocótinha!
Pensou Nino falando sozinho. Entra calmamente em casa. Olha a sala
Como se estivesse procurando algo de importante Joga no chão o couro
preto do animal. Pega uma garrafa de vinho. Enche o copo até a boca.
Bebe tudo. Tira o lenço com a mão ensanguentada e enxuga a saliva.
Corta com o punhal um pedaço de pão para comer e beber com vinho.
Senta na cadeira de balanço pensando. Depois canta uma canção. Levanta rápido e decidido. Vai até o quarto de casal. Abre a porta. Vê
Auxiliadora nua, branquinha, ajoelhada fazendo suas orações. Parecia
até uma santa. Em cima do oratório a bíblia dizia:
Não servirás a dois senhores. Nino entra e senta na poltrona. Fica
olhando Auxiliadora ajoelhada nua diante do seu santinho preferido.
Era devota incondicional de São Bento. Ele levanta e vai até o
espelho. Enxuga a saliva que estava escorrendo como nunca do canto da boica. Quando tira o lenço e olha para o espelho vê refletida a imagem de Ariadne nua.
Mas era uma visão já perdida. Ele olha novamente para o espelho e vê
a cabeça de Auxiliadora cheia de cobras. Toma um susto! Aquilo não era
o delírio do vinho. Era a sua realidade. Reclama consigo:
- Oh! Este corpo que carrego é tão maldito quanto os meus olhos
enganadores que só mostrou a minha alma decaída o que a paixão quis ver! Malditos olhos da paixão por que cegas à sabedoria?
Olha para Auxiliadora. Ela abaixa o rosto e beija os pés do São Bento.
As cobras da sua cabeça sibilam enrolando no seu santo protetor.Nino
a olha desfigurada no espelho e diz:
-- As máscaras covardes traidoras apenas dissimulam porque um
dia revelam a natureza verdadeira dos seus donos. Reza mulher! Reza
mesmo!
Auxiliadora acende as duas velas do candelabro. Nino sorri sarcasticamente a olhando pelo espelho.
--Reza comigo mulher, a oração que o teu anjo ensinou.

-Ó mãe
Cheia de graça
O espectro está agora convosco
Maldita sois vós
Entre todas as mulheres
Maldito é o fruto
Que pariste como meu
Que não viu a luz
Maldito  somos nós
Contra essa pecadora.
Que condenamos
Hoje e sempre na hora da nossa  morte...
Na hora da nossa morte...

Nino exclama:
-Mas por que eu não consigo dizer amém? Bem necessidade tinha de bênção, mas o amém ficou-me colado na garganta!

O oratório começa a fazer um barulho estranho. As duas pequenas portas
 abrem violentamente. Auxiliadora fica de cócoras. Molha o pão no
vinho do seu  padre. Come. Limpa a boca e fala:
- Qual é a dúvida meu preto? Você não é o pai?
O frasco vibra provocando rachaduras! O feto abre os olhos diabólicamente de repente!
Nino falar:
--- Como posso negar o que nunca abandonei?Mas isto não torna a
mentira uma verdade. Sabe Auxiliadora em todo esse tempo não
encontrastes seu verdadeiro lugar. Criaste uma pocilga para viver e
morrer. Tiveste varias chances e não aproveitastes. Isto é o teu mal. Muito mal! O mal agora está contigo. Vejamos se tua fé te salvará. Isto também pouco importa. Em qualquer dos casos haverá sempre um punhal. Joga o punhal ensanguentado com a carta em cima da cama para Auxiliadora ver. Ela responde:
--Nobre senhor, vos ofende a vossa altiva coragem, pensando nas coisas
com doentia imaginação. Ide, procurai água, apagai esse repugnante
testemunho da vossa mão.
Nino olha suas mãos sujas de sangue. Auxiliadora fala com raiva para ele:
--Por que tirastes os punhais do lugar de onde estavam? Levai-os e
manchai de sangue os camaristas adormecidos. Este crime tem de parecer
cometido por eles. Ariadne já esta condenada pelos romanistas?
 Nino reponde sério:
- Como as chagas do próximo são motivos de risos e ironia até na hora
da morte quando pagam pelos pecados alheios.
Ela olha e fala ironicamente:
-- Ó homem simplório! A filosofia não cai bem a um general! Na
verdade você sempre foi um coronel de merda! Estais perdendo a guerra.
Da uma gargalhada sarcástica!!!! As cobras da sua cabeça sibilam alto.
-O teu jogo tirano acabou! Fizestes uma aliança comigo. Lembra?
--Pobre Auxiliadora, nunca me ajoelhei contigo diante do altar de
Deus! -- A história mulher é a mestra da morte. Há séculos que lhe
manuseio as páginas. Cada dia que passa maiores são as surpresas que
ressaltam a minha alma. Você ficou jogando o tempo todo entre o templo
e a prisão. Reza! Quem sabe você vai para o céu?
Auxiliadora continua ajoelhada de costas. Vira o rosto para ele com
raiva e nojo. As cobras abrem as bocas sibilando mostrando seus dentes
cheios de veneno.

-- Sim, nojo! Quanto tempo aguentou aquele homem porco velho
fedorento! Quanto tempo teve que se submeter às caricias repulsivas
por uma migalha de pão. Sim, não tinha dado a ele um filho. Não cruzou
o seu sangue com o dele. O seu filho era o seu aborto: Apophis Reltih!

NINO

-É Auxiliadora, você não me da escolha. Existem leis desde a queda dos
anjos que devemos cumprir. Há milênios tentamos encontrar a origem da
linhagem sanguínea sagrada. Está é a única razão pela qual
sobrevivemos neste fardo temporário das nossas existências. Você
quebrou uma de nossas leis. Não deixaste para este mundo o meu
herdeiro. Não espere de mim nenhuma tolerância.

AUXILHIADORA

-Fracassastes!Terás que voltar só Deus sabe quando. Só se for em  outra
encarnação!
Tomou o resto do vinho do padre. Passou o braço na boca
limpando e disse:
.--Saia da minha casa!
--Como é que é?
Ela foi direta:
 -Esta casa é uma pocilga!Um inferno com você! Devias morrer na fogueira! Saia da minha casa, diabo fedorento!
Ela disse entre lágrimas:
O frasco vibra. As rachaduras se rompem. O liquido viscoso branco amarelado escorre.
Auxiliadora da um grito de espanto e de dor! O vidro se quebra e o
homúnculo cai no ventre de Auxiliadora. Mexe-se com vida. Vira a face
procurando os olhos de Nino.
--Apophis Reltih eu te dou a minha vida! Veja Auxiliadora o fruto do
nosso amor?
--- Prove! Prove!
Disse Auxilhiadora com o feto no colo procurando seus seios.
Fala com lágrimas nos olhos :
-Você  nunca deu um litro de leite a minha criança.
Nino reponde com uma voz estranha e face mefistotélica.

-Você ainda não compreendeu a fome da tua vida infeliz?

Idiota! A  Palavra do Pai é tudo para uma criança! É o leite que proporciona o amor. Só os que mamam da Palavra são felizes. Você nunca bebeu da Palavra só regurgitaste o leite da mentira. Você é a prova da minha mentira. Eu sou o pai da mentira que você carrega mulher!  Au-xi-lhi-a-doressss você é judia!
O candelabro com as duas velas cai. As cortinas começam a queimar.
Auxiliadora grita desesperada:
--Vamos morrer queimados na fogueira!Coloca o feto na cama.
Nino responde:
--Diabos não morrem no fogo do inferno! Reza, quem sabe você vai
para o céu. Deus é ateu e o diabo é cristão.
--Nino tira a sua espada e da um golpe rápido degolando-a. Sua cabeça
cai nos pés de São Bento.As cobras ainda ficam por segundos olhando a face do seu implacável demônio.

Nino finaliza:
--Infeliz!
Diabos não carregam nenhuma cruz!

E cai  tomado pelo fogo do seu inferno!